Sermão sobre a Quaresma
Leão Magno (400-461)
Há
muitas batalhas dentro de nós: a carne contra o espírito, o espírito contra a
carne. Se, na luta, são os desejos da carne que prevalecem, o espírito será
vergonhosamente rebaixado de sua dignidade própria e isto será uma grande
infelicidade, de rei que deveria ser, torna-se escravo. Se, ao contrário, o
espírito se submete ao seu Senhor, põe sua alegria naquilo que vem do céu,
despreza os atrativos das volúpias terrestres e impede o pecado de reinar sobre
o seu corpo mortal, a razão manterá o cetro que lhe é devido de pleno direito,
nenhuma ilusão dos maus espíritos poderá derrubar seus muros; porque o homem só
tem paz verdadeira e a verdadeira liberdade quando a carne é regida pelo
espírito, seu juiz, e o espírito governado por Deus, seu mestre. É, sem dúvida,
uma preparação que deve ser feita em todos os tempos: impedir, por uma
vigilância constante, a aproximação dos espertíssimos inimigos. Mas é preciso
aperfeiçoar essa vigilância com ainda mais cuidado, e organizá-la com maior
zelo, nesta época do ano, quando nossos pérfidos inimigos redobram também a
astúcia de suas manobras. Eles sabem muito bem que esses são os dias da santa
Quaresma e que passamos a Quaresma castigando todas as molezas, apagando todas
as negligências do passado; usam então de todo o poder de sua malícia para
induzir em alguma impureza aqueles que querem celebrar a santa Páscoa do
Senhor; mudar para ocasião de pecado o que deveria ser uma fonte de perdão.
Meus caros irmãos, entramos na Quaresma,
isto é, em uma fidelidade maior ao serviço do Senhor. É como se entrássemos em
um combate de santidade. Então preparemos nossas almas para o combate das
tentações e saibamos que quanto mais zelosos formos por nossa salvação, mais
violentamente seremos atacados por nossos adversários. Mas aquele que habita em
nós é mais forte do que aquele que está contra nós. Nossa força vem d’Aquele em
quem pomos nossa confiança. Pois se o Senhor se deixou tentar pelo tentador foi
para que tivéssemos, com a força de seu socorro, o ensinamento de seu exemplo.
Acabaste de ouvi-lo. Ele venceu seu adversário com as palavras da lei, não pelo
poder de sua força: a honra devida a sua humanidade será maior, maior também a
punição de seu adversário se Ele triunfa sobre o inimigo do gênero humano não
como Deus, mas como homem. Assim, Ele combateu para que combatêssemos como Ele;
Ele venceu para que também nós vencêssemos da mesma forma. Pois, meus
caríssimos irmãos, não há atos de virtude sem a experiência das tentações, a fé
sem a provação, o combate sem um inimigo, a vitória sem uma batalha. A vida se
passa no meio das emboscadas, no meio dos combates. Se não quisermos ser
surpreendidos, é preciso vigiar; se quisermos vencer, é preciso lutar. Eis
porque Salomão, que era sábio, diz: Meu filho, quando entras para o serviço do
Senhor, prepara a tua alma para a tentação (Eclo. 2,1). Cheio da sabedoria de
Deus, sabia que não há fervor sem combate laborioso; prevendo o perigo desses
combates, anunciou-os de antemão para que, advertidos dos ataques do tentador,
estivéssemos preparados para aparar seus golpes.