quinta-feira, 29 de agosto de 2013

“Voltar ao passado é progredir”

“Voltar ao passado é progredir” — Os cristãos celtas e um modelo de espiritualidade

Voltar ao passado é progredir” — esta expressão, que tem se tornado proverbial, revela algumas vezes profunda verdade: em determinadas situações, por mais estranho que pareça, voltar ao passado significa progresso, não retrocesso. É o caso da vivência da espiritualidade a partir do modelo do cristianismo celta antigo. Diante de tal afirmativa, alguém poderia pensar: “mas o que cristãos do século 21 poderiam aprender com cristãos que viveram em pleno período medieval?” Certamente o cristianismo contemporâneo tem a aprender com o cristianismo celta, entre muitas outras possibilidades, também no que diz respeito a uma vivência da espiritualidade em harmonia com a natureza, entendida como criação de Deus.

O cristianismo conhecido como “celta” floresceu na Irlanda, na Escócia, no País de Gales e mesmo em partes da Inglaterra, grosso modo, do quarto ao décimo séculos. São conhecidos os nomes de missionários celtas como Patrício, Columba e Columbano, que evangelizaram o norte das Ilhas Britânicas e vastas partes do continente europeu. Mas o cristianismo celta floresceu, humanamente falando, não apenas devido ao trabalho dos missionários mais conhecidos, mas também devido ao esforço de incontáveis anônimos, pessoas sinceras em sua fé, que viviam o cristianismo com “alegria e singeleza de coração”. Foi um cristianismo que desenvolveu características próprias, que o tornavam distinto do cristianismo de inspiração romana que florescia na Europa continental no mesmo período. O cristianismo celta tinha muitas características notáveis. Entre tantas, destaca-se aqui apenas a que interessa diretamente aos propósitos desta breve reflexão: um modelo de espiritualidade centrado na criação.

Os celtas desenvolveram uma teologia que enfatizava uma visão de Deus como Senhor da criação. Ainda que não haja nada de original nesta perspectiva — os cristãos celtas não foram os inventores desta teologia —, não se pode deixar de mencionar que há diversas implicações práticas dessa visão. Uma dessas conseqüências é exatamente ter uma atitude constante de júbilo e regozijo na criação, que revela Deus. Como os celtas eram um povo com forte inclinação à poesia, produziram muitas poesias comoventes, louvando a Deus pela obra da criação. Um poema datado do século nono, escrito na antiga língua do País de Gales, tem início com as seguintes palavras:

Todo Poderoso Criador, que fizeste todas as coisas;

O mundo não pode expressar toda a tua glória,

Ainda que a grama e as árvores possam cantar.

Outro poema escrito no século oitavo, na antiga língua irlandesa, declara:

Somente um tolo não seria capaz de louvar a Deus pelo seu poder,

Quando as pequeninas aves incapazes de pensar

O louvam com seu vôo.1


Estes versos expressam o lugar de destaque que a natureza ocupava na maneira como os cristãos celtas antigos viam a vida e pensavam sua relação com Deus. A visão da criação como reveladora de Deus está profundamente enraizada na Bíblia. Os fragmentos poéticos citados revelam influência de textos bíblicos como Salmos 98.7-8 ou Isaías 55.12. De fato, muito da poesia e das orações daqueles cristãos denotam influência da visão bíblica a respeito da natureza. Textos como o de Salmos 19.1eram particularmente queridos pelos cristãos celtas. Para eles, o mundo criado é uma teofania, isto é, uma manifestação de Deus. Nesse sentido, deve-se observar que os celtas contrastavam com os cristãos do mesmo período na Europa continental — enquanto estes tinham sua vivência de espiritualidade na escuridão de seus conventos, aqueles viviam uma espiritualidade ao ar livre, em meio à natureza. Não se importavam com o frio tão característico das Ilhas Britânicas! Antes, regozijavam-se no Senhor pelo cenário de deslumbrantes belezas naturais daquelas ilhas. No continente europeu prevaleceu uma visão influenciada pela antiga filosofia platônica, que via as coisas materiais como sendo inferiores às espirituais — nada mais distante do pensamento celta! Aliás, nada mais distante do pensamento bíblico!

Outro aspecto admirável da teologia desenvolvida pelos cristãos celtas é a sua concepção da soteriologia, isto é, da doutrina da salvação. Eles criam firmemente em Jesus Cristo, o Filho de Deus, que morreu na cruz para a salvação e libertação de todo aquele que crer. A cruz celta, que era esculpida em pedra, tornou-se uma figura conhecida em praticamente todo o mundo. As características básicas da cruz celta são: ter o braço horizontal tão largo quanto a sua base vertical, e ser circundada por um círculo, que provavelmente representa uma visão unificada das obras da criação e da redenção. Há também o aspecto de que tanto o poste como a trave da cruz celta são marcados por figuras esculpidas. Em muitas dessas cruzes há representações de animais. Desse modo, aqueles cristãos representavam esteticamente sua leitura de Romanos 8.19-23, que afirma a globalidade da obra de Cristo Jesus na cruz. Tal obra tem efeitos salvíficos para o povo de Deus e para o restante da obra das mãos de Deus, suas criaturas não-humanas. Os cristãos celtas demonstravam, dessa maneira, uma sofisticada teologia, holística em sua maneira de encarar a criação e a redenção. Assim, o cristão celta da Idade Média ficaria horrorizado se pudesse viajar no tempo e ver a destruição desenfreada da natureza que acontece em nosso tempo.

Há relatos documentais impressionantes de antigos santos celtas que tinham um relacionamento todo especial com os animais, criaturas não-humanas de Deus. Talvez alguns desses relatos sejam exagerados, mas mesmo assim deixam claro que eles levavam a sério, no sentido literal, a expressão “não fazer mal a uma mosca”. Columbano, por exemplo, chegou a afirmar: “Entenda a criação se desejas conhecer o Criador... pois aqueles que desejam conhecer as grandes profundidades precisam primeiro perceber o mundo natural”. Ian Bradley, professor de teologia prática e história da Igreja na Faculdade de Teologia da Universidade de Saint Andrews, na Escócia, afirma que esses relatos demonstram que os celtas se relacionavam com os animais no mesmo estilo de Jesus. Marcos afirma que Jesus estava com animais selvagens no deserto, mas eles não o feriam (não há como ler Marcos 1.13 e não se lembrar de passagens como Gênesis 2 ou Isaías 11.6-8). Neste sentido, o cristianismo celta antecipa em séculos uma ênfase que só viria ser encontrada em Francisco de Assis, tido em nossos dias como “patrono” do movimento ecológico. Bradley afirma também que há comprovação de que Francisco visitou uma comunidade monástica em Bobbio, na Itália. Essa comunidade (assim como outras nas vizinhanças de Assis) fora fundada pelo próprio Columbano. Bradley defende a teoria de que, nesses mosteiros de origem irlandesa, Francisco aprendeu o amor à natureza, que o tornou tão conhecido.

Portanto, dos cristãos celtas medievais podemos aprender a ver a natureza com espírito de alegria, gratidão e louvor a Deus. Aprendemos com eles a ter uma espiritualidade que não é descolada nem deslocada da criação.

“Voltar ao passado é progredir”; no que diz respeito à prática da espiritualidade centrada na criação, este provérbio é absolutamente verdadeiro e necessário para o nosso tempo.



Nota - Texto da Revista Ultimato: www.ultimato.com.br › revista › edicao 294
1. Os versos citados e as referências a Bradley foram extraídos do livro The Celtic Way, de Ian Bradley (London: Darton, Longman & Todd, 2003).




Carlos Caldas é pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil. Leciona na Escola Superior de Teologia e no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie em São Paulo.